sexta-feira, janeiro 13, 2006

A dor é de Morango

Os dias passam gelados enquanto como gelado na varanda interior da casa de praia. Sempre adorei o mar fragoso do Inverno. Sempre odiei gelados no Verão. Os cigarros acabaram ontem e a música que trouxe comigo esgotou-me a paciência, ressoa na sala como um velho disco riscado. Por vezes a sensação que me dá é que te ouço entrar e falar sem parar, interrompendo o silêncio prolongado dos dias. Sinto que não falo há anos… cheguei há dez dias! Tu saíste há mais alguns…
Depois de uma vida torturada pela tua voz crispada, alta, rouca, sem piedade da minha necessidade de refúgios e silêncios, apetece-me voltar a ouvi-la. Só mais uma vez. Agora que a Terra te engole devagar, com a lentidão da eternidade, apetecia-me ouvir essa voz, que estupidez!
Talvez precise de um pouco de maresia… o calor do fogo está a deixar-me triste e nostálgica demais para me aturar… só eu me aturo agora… assim o quis. Nem mais um cigarro me deseja aturar. Anos, não foi? Ou terão sido séculos que vivemos juntos? Aquele cheiro pestilento de ressaca que te era tão característico… onde deixei os braços esta noite? Ai, ai qualquer dia fica lá a cabeça…
Mais gelado? Hum… o morango é o meu preferido. Salpicado de pedaços verdadeiros. Como se alguém quisesse saber disso… Tu nunca o soubeste, não reparavas que o vermelho e o cor-de-rosa eram as minhas cores preferidas, as cores do gelado de morango. E as pérolas as minhas jóias… as lágrimas as minhas companheiras de noite… e o tédio o meu animal de estimação.
Recordo com nitidez o teu toque rude ao fazeres carícias. De vez em quando tentavas gostar de mim. Pedias-me para pintar os lábios e dançar contigo um charleston qualquer… iam altas a noite e a bebedeira, por essa altura. E eu aproveitava-me desses momentos breves em que me deixavas sonhar além das paredes da nossa casa de cidade, amontoada em tantas outras iguais a ela.
Aqui sim estou bem… neste cantinho a cair para o mar… enrolada em mantas de lã a comer gelado de morango. Já não te podes queixar de eu estar gorda, nem eu me vou queixar de pesar demais para as pernas… não penso deixar este cadeirão tão cedo… não penso falar outra vez… aqui sim estou muito bem!
Venço a vontade de seja o que for… não tenho mais desejo além deste gelado, abandonada por tudo vou abandonando tudo e encontrando o refúgio perdido em tantos anos de dedicação a ti… morto e enterrado devorado pela Terra…
O mar está revolto e a sua espuma grita de prazer à lua de Janeiro numa paixão natural. No silêncio aquecido da casa de Verão um soluço contido irrompe de repente, sem convite. “Se calhar… até me fazes falta!”


11-01-2006 SoBoop

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